Um dia, era manhã, uma daquelas raras aqui no Ceará, fria. O lugar era a praia. O vento cortava o rosto ainda aquecido do sono. Desci ali pra rezar um pouco e ver um pouco do mar. Pisei na areia, senti a água sentei e comecei a pensar.
Sabe quando o pensamento simplesmente vem? Não tinha intenções nenhuma de pensar coisa alguma. Mas de alguma forma todo aquele contexto era um chamativo pra isso. Toda a história, todas as coisas que fiz e que tenho vontade de fazer queriam sair como em turbilhão. Primeiro pensei nas bobagens. Minha nossa! Como já fui jovem e tolo. Lembrei de uma vez que briguei com meu pai e me sentei ali, exatamente naquele espaço d’areia, a briga aconteceu porque eu não entendia. Não era homem ainda, mas queria ser, não era mais criança, mas ainda queria ser, naquele dia meu pai não queria que eu dirigisse aos 15 anos de idade e aquela praia me recebeu de braços abertos. O filme da infância e da adolescência passou como fogo. A primeira namorada, o primeiro porre, as discussões com os amigos, a primeira noite fora de casa. Essas coisas apareceram na tela dos olhos e naquele dia eu percebi que tudo que havia acontecido naqueles anos alicerçaram o que sou. Agora vou soar como Shakespeare “O menestrel”.
A primeira namorada me ensinou que devo escolher melhor as pessoas e que o primeiro amor nem sempre é o melhor amor; o primeiro porre mostrou que certas coisas não podem virar rotina e que esse tipo de Rotina pode determinar o fim de alguém, e que os exageros não são convenientes; as discussões com meus amigos me ensinaram que os melhores amigos discordam de nós quando estamos errados e que discordar ensina; a primeira noite fora de casa me mostrou o valor e a importância de ter um lugar para aonde ir, independente do valor material que ele tenha, lá é sua casa. Escrevendo essa crônica eu percebo de como a memória do ser humano é um prodígio. Posso lembrar daquela manhã como naquela manhã me lembrei de tantas coisas.
As coisas que aprendi me fizeram o adulto que sou. Mas, ainda não sou completo. O futuro está aí e ele não é uma frase pronta. O futuro tem uma razão para ser futuro. Naquela manhã eu pensei sobre as fraquezas da juventude que transformaram um garoto em algo irrefutavelmente sólido e esse homem sólido, porém inexperiente, começou a desejar algumas coisas e pensar em outras e como o filme da minha vida passava diante do mar, pensei em mim mesmo como um barco.
Meu coração era as máquinas, forte e robusto, como os mais poderosos motores, me levando a vante e retrocedendo apenas se necessário; meu pai era meu leme, que me guiava por águas calmas e revoltas; minha mãe era pra mim um mar calmo, onde eu poderia descansar das torturas e tormentas; a mulher amada pensei nela como a terra, aquele lugar tranqüilo pra onde sempre voltaria.
A visão de mim mesmo dessa forma foi agradável, um barco é uma bela visão, todo mundo gosta, mas mesmo um barco, um dia, precisa parar. Já era hora, a manhã já era alta, o sol estava forte, o vento mudado, o calor substituía o frio, a hora era dada. O destino ainda me queria ali por alguns momentos, porém. No momento em que decidi ir embora, dei de cara com um senhor. Setenta e poucos rijos anos, expressão forte, perguntando “que horas são”. O encontro foi breve e naquele momento notei que algo faltava. O roteiro daquele filme era incompleto.
Refleti sobre a criança, sobre o jovem; pensei sobre o adulto. Mas e o velho? Pra mim a velhice ainda não se realizara, não havia nenhum desejo sobre aquilo, nenhuma perspectiva. No entanto, pensar sobre aquilo era fácil. Ora, se eu entendia bem o passado, vivia satisfatoriamente o presente, por que não desejar corretamente o futuro? Assim se deu. Nos últimos momentos, ainda olhando para o mar, repassei toda a minha vida e todas as minhas vontades e decidi que ficar velho era exatamente isso, ficar velho. Olhei para o meu corpo e desejei que quando velho ainda tivesse força suficiente pra carregar um neto nos braços; que as minhas mãos ainda fossem hábeis o suficiente para realizar as mais simples tarefas como, cortar as unhas, escrever, pintar; decidi que minhas mãos teriam que ser calejadas pra mostrar que minha vida não foi fácil e mesmo assim foi boa, que construí; refleti sobre o meu rosto e decidi que quando estiver velho quero um rosto com rugas, por que um rosto sem rugas é como um livro sem história; e por fim, desejei que minha morte fosse uma conseqüência e fosse exatamente como minha vida, sem glórias, mas digna como qualquer coisa pode ser digna.
Um sorriso, um até logo para o mar, uma olhadela para o lugar na areia, uma vida passada a limpo. Uma manhã, uma história.
Uma crônica de Davi Castro de Andrade
Passando aqui para agradecer ao meu amigo blogueiro a atenção de publicar
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